sexta-feira, 11 de julho de 2008

O Estado Brasileiro não é laico (ou, "Sobre quando encontrei o Grande Juiz Boçal")


Estado laico é aquele que não possui orientação religiosa para sua ordenação. Supostamente, o Brasil é laico desde a sua primeira Constituição Republicana, promulgada em 1891, quando existiu a separação entre o Estado e a Igreja Católica. Hoje a tarde eu senti na pele como isto não é verdade.


Fui dar um testemunho na Justiça Federal em favor de uma conhecida que está sendo processada pela União. Ela é a senhora que presta serviço de reprografia no centro acadêmico da Univesidade em que estudei. Pelo que lembro, a cópia saía a 6 centavos/folha, e os estudantes podiam pagar a prazo suas cópias, quando aparecia um dinheirinho, sem problemas. Sempre foi assim, até que a Universidade decidiu cobrar uma licença de trabalho que sabem que ela não possui, podendo assim expulsá-la do lugar, pois se ocorrer uma licitação, ou concessão, que seja, o favorito para vencer é um conhecido empresário do setor, que já possui "lojas de xerox" em outros lugares, inclusive em outros campus da mesma Universidade.
Ele provavelmente deve ter acordado alguma coisa com a atual diretora do Instituto que é dono do prédio. Mas este é um assunto que eu prefiro deixar sob o cuidado dos gélidos ventos que sopram nesta época naquelas bandas do sul. Entretanto, o assunto central não é este. O mais importante para mim foi observar a imbecilidade daquele ritual chamado de "audiência", como se estivéssemos na presença do "Próprio Nazareno"!


Para começar, o Tribunal se trata de um ambiente absolutamente constrangedor. Não sei como existem pessoas que conseguem trabalhar em um lugar como esse. Fazem de tudo para intimidar você, a começar pelo espaço, pelo lugar. Numa mesa em forma de "U", você deve sentar na "ponta da curva" , tendo ao seu lado os advogados das partes, um em cada orelha, evidentemente. Na sua frente, o "Grande Juiz" (no meu caso era um tipo bem boçal com sotaque que me pareceu mineiro, sem querer ofender). Ao lado dele, uma espécie de escrivã-office-girl-recepcionista, que é quem faz quase todo o trabalho, na verdade. Lembrou-me uma cambona do candomblé.


Por falar em religião, minha incredulidade com aquele ambiente castrador e intimidador chegou ao ápice quando reparei o enorme crucifixo dourado pregado na parede, exatamente sobre a cabeça do Juiz, geometria provavelmente proposital, dado a quase-perfeita composição da imagem crucifixo-dourado-Grande Juiz do ângulo de visão daqueles que sentam no lugar destinado aos depoentes. Na foto do post, o maior exemplo nacional deste absurdo: o plenário do Supremo Tribunal Federal, em Brasília.

Enquanto eu observava estarrecido estas questões, iniciou de súbito minha interação com o Grande Juiz. Também terrível! Procurando me intimidar, mas com o olhar suave e austero, nem deu boa tarde e foi logo me perguntando se eu sabia que estava num Tribunal e que ali, sob o amparo da lei, eu não sabia que não podia mentir, sob pena de ser preso por alguma coisa, ou algo assim. Eu respondi que sim, com o medo aumentando à medida que eu reparava em coisas como o grande microfone prostrado na altura da minha boca que gravava tudo o que eu dizia, devidamente editado pelas palavras do Juiz, que traduziam à sua maneira o meu depoimento ditado para a escrivã.
Eu já pensava se podia haver ali algum tipo de detector de mentiras pelo timbre da voz, se o Juiz e a faz-tudo vigiavam tudo em tempo real, essas coisas. A moribunda imagem de Jesus, que me fazia recordar a severidade cristã de minha avó aplicada em minha infância eram demais para mim. Naquele momento, com tudo aquilo me cercando, confesso que quase soçobrei. Quase confessei meus pecados mais íntimos. Quase enumerei os pequenos delitos que cometo na minha vida. Quase!


Felizmente consegui sobreviver, para pelo menos atestar que o Estado Brasileiro não é laico e que a despeito de tudo isso, ainda consegui mentir em favor da mulher processada pela União.

2 comentários:

Anônimo disse...

Só p/ entender seu raciocínio: o Brasil é um Estado confessional porque nas salas de audiência sempre tem um crucifixo na parede e porque os juízes não falam boa tarde para as testemunhas de um processo?
Uai, credo.
Quem dera aos afegãos que o talibã, para seguir sua religião, impusesse apenas a colocação de uma porção de quadros de alá nas repartiçoes públicas...

Anônimo disse...

Pois é amigo, mas a verdade é que não estamos no Afeganistão, e que é errado termos uma lei diferente da prática, especialmente nos espaços reservados justamente para este fim, como um tribunal. Eu entendi a sensibilidade da descrição. Ademais, pelo que vi, a crítica à postura dos juízes não é novidade neste blog. Parabéns aos autores. Não podemos aceitar certas coisas. E sorte aos postulantes deste sistema. Espero que vocês sejam logo aprovados em seus concursos e deixem de encher nosso saco com seu pensamento acrítico!